150 anos da descoberta do bacilo de Hansen: o que mudou de lá pra cá?

Primeira evidência científica da Mycobacterium Leprae surgiu em 1873. 
Entenda mais sobre a trajetória da doença no Brasil e no mundo.

Mycobacterium Leprae 1

A Mycobacterium Leprae (M. leprae), agente causador da Hanseníase, foi descoberta em 1873 pelo médico norueguês Gerhard Armauer Hansen. O marco é a primeira evidência científica da característica infectocontagiosa da doença. Desde então, os avanços no tratamento e nas estratégias de prevenção foram cada vez mais ampliados, garantindo inclusive o tratamento e a cura das pessoas acometidas.

A descoberta permitiu acesso a estudos imunológicos que mostram que o M. leprae tem alta infectividade e baixa patogenicidade. “Isso significa que a bactéria é capaz de infectar um grande número de pessoas, mas apenas poucas delas de fato adoecem”, aponta Alexandre Menezes, epidemiologista e diretor nacional da NHR Brasil.

Contudo, mesmo após um significativo período de tempo da descoberta do Bacilo de Hansen, ainda existem uma série de limitantes quanto a exploração científica que impedem ou dificultam a compreensão plena da doença. 

Hanseníase no mundo

Registros apontam que a M. leprae atinge a humanidade desde 4.300 a.C, com seus principais focos em regiões que hoje compreendem a Índia, a China e o Japão. Na Europa, a doença foi disseminada pelos soldados de Alexandre, o Grande, infectados após expedições realizadas na Índia em 300 a.C. Não à toa, a hanseníase é considerada uma das mais antigas doenças do mundo ainda em circulação.

Na época, por ser uma doença de origem desconhecida e ainda sem tratamento aparente, era confundida com outras enfermidades que também causavam manchas e lesões na pele, como a sífilis e as micoses.

Com forte apelo religioso, a doença era vista pelos hebreus como uma maldição ou castigo divino. Chamada de tsraath ou saraath, (“lepra”, em hebreu), o termo era empregado para definir uma “condição anormal da pele das pessoas que necessitavam de purificação”. Tal perspectiva atribuía uma série de estigmas e preconceitos a pessoas acometidas, assim como impedia uma compreensão prática e científica para enfrentar a doença. 

Como uma das primeiras ações para enfrentar a hanseníase, foi determinado pela Igreja Católica, no ano de 583, que as pessoas acometidas fossem afastadas daquelas que não tinham qualquer sinal ou sintomas. A estratégia ocasionou o aumento do número de hospitais e reforçou ainda mais o preconceito e a exclusão. 

Hanseníase no Brasil

No Brasil, os primeiros casos de hanseníase datam de 1496, quando estrangeiros infectados vindos da Holanda, França, Espanha e Portugal formaram gerações de focos endêmicos da doença. Em 1740, após cerca de 300 casos terem sido identificados no Rio de Janeiro, foi realizada a primeira Conferência Médica para desenvolver uma profilaxia para a hanseníase. 

Assim como na Europa, a atitude dos médicos da corte portuguesa foi de isolar as pessoas “doentes de lepra” no bairro São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. Essa medida foi replicada por todo o Brasil, instituindo diversos “leprosários” pelo país.

Entre 1920 e 1962, o governo brasileiro instituiu de forma compulsória o isolamento de pessoas acometidas pela hanseníase em todo o território nacional. No entanto, este prazo não foi imediatamente aceito como prática em todo o país, permanecendo em alguns Estados até 1986.

Tais medidas se estabeleceram de forma discriminatória e desumana, avalia Alexandre. “Os leprosários causaram severos danos psicossociais a milhares de pessoas atingidas pela doença e de seus familiares”, diz ele. 

Uma grande conquista histórica da luta de pessoas acometidas pela hanseníase, apoiada por organizações como o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), foi a garantia de benefícios do governo para pessoas que foram arbitrariamente excluídas de suas vidas e famílias na época do isolamento compulsório.

LinhaTempoHansAvanços

No final da década de 70, houve avanços expressivos no desenvolvimento de políticas públicas para o combate à hanseníase no Brasil. Em 1976, o termo “lepra” teve seu uso abolido de forma definitiva em documentos públicos oficiais, sendo substituído pela terminologia “hanseníase”.

A partir de 1980, a Poliquimioterapia (PQT) foi definida como tratamento padrão, combinando medicamentos responsáveis pela interrupção da transmissão e pelo processo de cura das pessoas acometidas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a introdução da PQT proporcionou mundialmente na queda da prevalência da doença (número de casos novos e já existentes) e na diminuição de sua incidência (número de casos novos). 

Segundo Maria Leide W. de Oliveira, médica dermatologista e professora da UFRJ, o tratamento passou a ser feito de forma mais sistemática e uniformizada, uma vez que a PQT consiste na combinação de doses de remédios administrados de maneira supervisionada e autoadministrada, tornando o processo mais eficaz e efetivo. “Entretanto, observo que estamos novamente perdendo a uniformidade e a regularidade das tomadas supervisionadas e o controle”, aponta a pesquisadora.  

A dermatologista reforça que o combate à hanseníase não envolve somente o tratamento medicamentoso, mas sim uma série de cuidados e exercícios físicos que possam evitar o potencial incapacitante da doença, assim como a manutenção de focos de transmissão em regiões com pessoas mais vulneráveis. 

“A hanseníase é causada por uma bactéria de multiplicação lenta e que pode também ficar latente em algumas pessoas que não tem capacidade de resistência a ela. O longo período de incubação e a latência constituem desafios para a realização do diagnóstico precoce e tratamento eficaz”, aponta Maria Leide. “O potencial de pessoas que mesmo tratando a doença regularmente tenham recidivas por conta de bactérias que escapam do antibiótico, é mínimo até então”.

Desafios

Passados 150 anos de sua descoberta, a M. leprae ainda é objeto de muitas lacunas de conhecimento no campo científico. Maria Leide avalia que os estudos sobre a hanseníase foram negligenciados se comparados à tuberculose, por exemplo. A doença teve o bacilo causador descoberto em 1882, apenas nove anos após a descoberta da bactéria da hanseníase.

“Talvez por ser uma doença que teve maior prevalência em ricos e poetas, a tuberculose teve um certo ‘glamour’ que a hanseníase nunca teve”, expõe a especialista. 

Ela observa que mesmo considerando a complexidade da micobactéria para sobreviver por tantos séculos entre a humanidade, a negligência é um dos principais motivos que leva ao desinteresse da indústria farmacêutica a desenvolver inovações em termos de prevenção e tratamento. “Por esse motivo, ainda há perguntas não respondidas sobre a hanseníase que prejudicam o avanço no plano de combate à doença”.

Alexandre Menezes corrobora com a fala da especialista, destacando que no contexto atual de saúde pública, existe uma relação da magnitude da ocorrência de uma doença transmissível com as condições de vida das pessoas. 

“Não há como pensar em formas de controle da hanseníase sem refletir sobre como contornar a vulnerabilidade social e econômica das populações mais atingidas. Apenas com o desenvolvimento concomitante de políticas públicas de saúde, saneamento, educação e assistência social poderemos alcançar um país livre do sofrimento causado pela doença”, defende o epidemiologista.

Saiba mais:
▪ Um Breve Histórico da Hanseníase (Isaías Nery Ferreira, 2019)