Por que a hanseníase incide com maior frequência na população negra?

No Dia da Consciência Negra, a NHR Brasil discute como os determinantes sociais influenciam no acesso à saúde e no adoecimento por doenças como a hanseníase. Taxa de pobreza e dados imprecisos sobre essa parcela da população reforçam a situação preocupante.

ConscienciaNHRBrasil2023

A Hanseníase é uma doença infecciosa provocada pelo Mycobacterium leprae (ou bacilo de Hansen) que pode atingir qualquer indivíduo por meio de contato direto e prolongado com uma pessoa doente e sem tratamento. Entretanto, sua incidência é registrada principalmente em grupos que se encontram em estado de maior vulnerabilidade social e econômica. Afinal, o acesso precário a saneamento básico e a serviços de saúde, assim como a aglomeração de pessoas na mesma residência, são determinantes de risco para o adoecimento pela enfermidade.

Mas então quem são as pessoas que mais adoecem por hanseníase?

Segundo o estudo Socioeconomic determinants of leprosy new case detection in the 100 Million Brazilian Cohort: a population-based linkage study, publicado em 2019 no periódico The Lancet Global Health pela Fiocruz, a população negra tem até até 40% mais chances de contrair a doença. O risco é ainda maior para jovens pretos com idade até 15 anos. A pesquisa revela que esse grupo tem 92% mais chances de ser acometido pela hanseníase quando comparados à população branca na mesma faixa etária.

Essa realidade se estabelece em um contexto de extrema desigualdade social, fator determinante relacionado a prevalência de doenças tropicais negligenciadas como a hanseníase. E quando levamos em consideração que a taxa de pobreza de pretos e pardos é duas vezes maior do que a da população branca, essa realidade se torna ainda mais preocupante.

De acordo com a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada em 2022 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual de pobreza entre pessoas pretas é de 34,5%, e em pessoas pardas de 38,4%, enquanto a taxa de pobreza entre pessoas brancas foi calculada a 18,6%.

Desigualdade Racial e o impacto nos casos de hanseníase

A disparidade social entre a população negra e branca no acesso a serviços básicos de saúde e a condições de vida dignas para a prevenção do adoecimento por causas evitáveis aprofunda os desafios para a eliminação da hanseníase.

Francilene Mesquita, mulher negra curada pela hanseníase e liderança do Morhan Piauí, compartilha que a falta de políticas públicas adequadas para o acesso da população negra aos serviços de saúde acentua ainda mais esse contexto de desigualdade.

“Em primeiro lugar, é importante dizer que apesar da hanseníase permanecer em níveis altos na população negra, isso não quer dizer que esta população seja doente, mas sim que somos vítimas desse sistema. Quantos brasileiros não têm acesso sequer a água potável, a água de qualidade? Eu acredito que essas diferenças influenciam muito nessa questão do adoecimento da saúde da população negra, principalmente das mulheres negras”, alerta ela.

A liderança ressalta que é necessário que a sociedade aponte caminhos para solucionar essa questão. “É preciso que possamos nos apropriar e estudar nosso próprio território, dialogando com as pessoas dos bairros e escutá-las. A partir disso, podemos levar essa escuta para os Conselhos Municipais de Saúde para que alguma mudança seja feita”, destaca Francilene.

Os obstáculos enfrentados pela comunidade negra, decorrentes da discriminação racial e das manifestações da desigualdade social mencionadas anteriormente, não apenas dificultam o diagnóstico precoce, mas também impactam a continuidade do tratamento para aqueles que foram acometidos pela hanseníase. É isso o que preocupa Maurineia Roseno, liderança do Morhan Recife que foi impactada pela enfermidade e sabe o que seus pares passam no caminho para a cura.

“As pessoas me perguntam: ‘eu estou com hanseníase , o que é que eu vou enfrentar lá fora?’. O preconceito, o estigma no trabalho vindo de um colega e às vezes até da pessoa que está do nosso lado, como o marido, né?”, lamenta ela.

Maurineia clama por mais políticas públicas voltadas para a promoção da saúde da população negra e por mais diálogo nos ambientes dos serviços de saúde com a comunidade. E salienta que enquanto liderança política na luta pelos direitos das pessoas acometidas pela hanseníase, ela continua na missão de empoderar outras pessoas impactadas pela doença.

O papel de pesquisas e dados mais precisos sobre a saúde da população negra

O mestre em saúde pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador de Doenças Tropicais Negligenciadas, Anderson Fuentes, considera que há uma escassez de dados a respeito da raça dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O pesquisador revela que, embora incorpore o elemento "raça e cor" como uma variável em suas investigações, os bancos de dados do qual extrai informações sobre a população com hanseníase, como o SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), ainda apresentam consideráveis limitações na precisão dessa classificação.

“Existem vários desses componentes que não são preenchidos, ficando sem registro durante a notificação e impossibilitando a qualificação dos dados, assim como dos estudos”, explica Anderson. Além disso, o pesquisador adiciona que a quantidade de pesquisas com o direcionamento específico para a compreensão da realidade da saúde de pessoas negras ainda é muito limitada.

“Hoje não existem estudos específicos para uma raça, por exemplo, para raça-cor negra ou parda. Isso fica subentendido como uma variável. Os estudos são breves, não são ampliados para encontrar especificidades para esta população” revela ele.

Atualmente Anderson reconhece uma certa inquietação no campo acadêmico em desenvolver pesquisas direcionadas para a compreensão dos desafios da população negra. Contudo, somente a vontade dos pesquisadores não é o suficiente. “Se não existe um subsídio específico para poder promover ou direcionar as pesquisas, os pesquisadores acabam por não pesquisarem”, frisa.

Enquanto cientista, Anderson percebe que é necessário que as pesquisas abordem a origem dos problemas de saúde da população negra. O pesquisador também destaca que as políticas públicas devem ser planejadas pensando na promoção de qualidade de vida, mas que essa questão não será resolvida “na primeira geração de investimentos”, mas sim após uma longa política de desenvolvimento humano focando na eliminação das desigualdades que negligenciam profundamente a saúde das populações vulneráveis.

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